A Palavra da Vítima na Violência Doméstica: Entre a Proteção Necessária e o Risco da Injustiça
- Ricardo Bianchini de Assunção
- 1 de nov.
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A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) representou um marco civilizatório inegável na proteção da mulher contra a violência doméstica e familiar. Um de seus pilares é a valorização da palavra da vítima, reconhecendo que, muitas vezes, as agressões ocorrem na clandestinidade do lar, longe de testemunhas. Contudo, a aplicação desse entendimento de forma absoluta, utilizando o depoimento feminino como prova única e incontestável para embasar condenações criminais, acende um perigoso alerta no sistema de justiça e merece uma reflexão crítica.

A Posição dos Tribunais Superiores: Relevância Sim, Soberania Não
Os tribunais superiores, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ), firmaram o entendimento de que, em crimes de violência doméstica, a palavra da vítima possui especial relevância probatória. Essa posição é justificada pela natureza oculta desses delitos.
No entanto, a própria jurisprudência tem evoluído para aparar os excessos e reafirmar garantias fundamentais do processo penal. A tendência atual é clara: embora relevante, a palavra da vítima não pode ser o único fundamento para uma condenação. É indispensável que o depoimento seja corroborado por um mínimo de provas, ainda que indiretas.
STJ - AgRg no AREsp 1495616 AM — Publicado em 23/08/2019A jurisprudência desta Corte é assente no sentido de que, em se tratando de crimes praticados no âmbito doméstico, a palavra da vítima tem valor probante diferenciado, desde que corroborada por outros elementos probatórios, tal como ocorrido na espécie.
O STJ também já decidiu pela absolvição quando a condenação se baseia apenas em elementos do inquérito que não foram confirmados em juízo, especialmente se a vítima se retrata (STJ - AgRg no AgRg no AREsp 2517152 PR). Isso demonstra a preocupação em evitar que a fase investigativa, onde o contraditório é limitado, seja suficiente para condenar.
O Perigo da Falsa Comunicação de Crime e a Instrumentalização da Lei
Ignorar a necessidade de provas de corroboração abre uma fenda perigosa para a instrumentalização da lei como ferramenta de vingança pessoal. Em contextos de términos de relacionamento conturbados, disputas por guarda de filhos ou traições, a acusação de um crime pode se tornar uma arma poderosa e devastadora.
Uma mulher que se sente traída, uma ex-namorada que não aceita o fim do relacionamento ou alguém que busca vantagens em um processo de divórcio pode, infelizmente, fazer uso indevido da proteção legal. Quando o sistema judicial aceita a palavra da suposta vítima como verdade absoluta, o acusado se vê em uma situação de extrema vulnerabilidade, onde sua presunção de inocência é invertida: ele precisa provar que é inocente, em vez de o Estado provar que ele é culpado.
Essa realidade cria um ambiente de insegurança jurídica e pode levar a erros judiciários irreparáveis, com a condenação de homens inocentes com base em relatos isolados e não verificados.
Lei Maria da Penha e o Princípio da Isonomia
A Lei Maria da Penha foi criada para corrigir uma desigualdade histórica e proteger a mulher, presumidamente a parte mais vulnerável nas relações domésticas. Trata-se de uma ação afirmativa que visa concretizar o princípio da isonomia material, tratando desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades.
Contudo, a proteção conferida pela lei não pode ser um salvo-conduto para a supressão de outras garantias constitucionais, como o contraditório, a ampla defesa e a presunção de inocência. A isonomia não significa dar um cheque em branco à palavra da mulher, mas sim garantir que ela seja ouvida em um ambiente seguro e que sua denúncia seja investigada com seriedade, buscando-se sempre a verdade real dos fatos.
A Violência Doméstica Contra Homens: Uma Realidade Invisível
A discussão se torna ainda mais complexa quando se observa que homens também são vítimas de violência doméstica. Embora estatisticamente minoritários, os casos de homens que sofrem agressões físicas e psicológicas por parte de suas parceiras existem e são frequentemente subnotificados, seja por vergonha, medo do descrédito ou pela percepção de que a lei os desampara.
Muitas mulheres agressoras se escondem atrás do manto protetor da Lei Maria da Penha, utilizando-a para inverter a situação e se colocar no papel de vítimas. Quando um homem agredido reage para se defender, não raro é ele quem acaba sendo processado e condenado, enquanto a verdadeira agressora é amparada pelo sistema.
Essa inversão não apenas causa uma profunda injustiça no caso concreto, mas também enfraquece a legitimidade da própria Lei Maria da Penha, que foi desenhada para proteger vítimas reais, e não para ser usada como escudo por agressoras.
Conclusão: Equilíbrio é a Chave
A palavra da vítima é, e deve continuar sendo, um elemento de grande importância na apuração de crimes de violência doméstica. No entanto, o amadurecimento do sistema de justiça exige que essa palavra seja tratada como o ponto de partida da investigação, e não como seu ponto final.
A condenação criminal exige certeza, e essa certeza só pode ser alcançada por meio de um conjunto probatório minimamente sólido. Abdicar dessa premissa em nome de uma proteção que se pretende absoluta é flertar com a injustiça e permitir que a nobre finalidade da Lei Maria da Penha seja desvirtuada, causando danos irreparáveis não apenas a homens inocentes, mas à própria credibilidade da Justiça.
Tenho dito!
Dr. Ricardo Bianchini de Assunção
Advogado Criminalista
oab;sp 446443





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