A Repetição da Tragédia: O Rio de Janeiro entre a Barbárie e a Impunidade
- Ricardo Bianchini de Assunção
- 2 de nov.
- 4 min de leitura

O Rio de Janeiro acorda, mais uma vez, sob o luto e a indignação. O recente episódio de violência letal em uma de suas comunidades não é um ponto fora da curva; é a trágica repetição de uma política de segurança pública falida, que há décadas insiste no confronto como única resposta e ceifa vidas, majoritariamente negras e pobres. É hora de fazer uma análise crítica, apontar responsabilidades e, principalmente, discutir caminhos para que essa engrenagem de morte seja finalmente desmontada.
A Falência da Estratégia de Confronto
A lógica por trás de operações policiais que resultam em dezenas de mortos é vendida à sociedade como uma "guerra ao tráfico". Contudo, o que se vê na prática é uma guerra contra os moradores das favelas. Sob o pretexto de combater o crime, direitos fundamentais são suspensos, e a vida humana perde seu valor. Cada incursão violenta deixa um rastro de dor, famílias destruídas e uma comunidade ainda mais refém do medo — seja do crime organizado, seja do próprio Estado que deveria protegê-la.
Essa estratégia não apenas é ineficaz para desarticular as redes criminosas em sua estrutura de poder e lavagem de dinheiro, como também fortalece um ciclo de violência e vingança, tornando a paz um horizonte cada vez mais distante.
A Responsabilidade do Governador e as Vias de Punição
Diante de um cenário de violações sistemáticas de direitos humanos promovido por agentes do Estado, a figura do governador, como chefe do Poder Executivo e comandante em chefe das polícias, está no centro do debate. Mas quais são as reais possibilidades de punição?
Crime de Responsabilidade (Impeachment): A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) pode iniciar um processo de impeachment se ficar comprovado que o governador atentou contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, previstos na Constituição. A autorização ou o incentivo, direto ou por omissão, a uma política de segurança que resulta em massacres pode, em tese, configurar crime de responsabilidade. O caminho, no entanto, é eminentemente político e depende da correlação de forças na assembleia.
Crime Comum: Caso se prove que o governador deu uma ordem direta para a execução das vítimas ou se omitiu dolosamente quando tinha o dever de agir para evitar o resultado, ele poderia responder por crime comum. No entanto, a competência para processar e julgar um governador por crimes comuns é do Superior Tribunal de Justiça (STJ), e a abertura do processo depende de autorização da ALERJ. A dificuldade probatória para conectar o chefe do executivo diretamente ao ato na ponta da linha é imensa.
Cortes Internacionais: Esgotadas as vias nacionais, o caso pode ser levado a cortes internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que já condenou o Brasil em outros casos de violência policial. Essa via, contudo, é longa e seu resultado é mais simbólico e político do que uma punição criminal direta ao governante.

O Fantasma do Carandiru: Uma Analogia sobre a Impunidade

É impossível não traçar um paralelo entre o ocorrido e o Massacre do Carandiru, em 1992, quando 111 detentos foram mortos pela Polícia Militar de São Paulo. Aquele episódio se tornou o maior símbolo da violência de Estado e da subsequente impunidade no Brasil.
A Comparação das Condenações: No caso do Carandiru, dezenas de policiais militares foram levados a júri popular e condenados em primeira instância. Contudo, anos depois, o Tribunal de Justiça de São Paulo anulou as condenações, argumentando que não era possível individualizar a conduta de cada policial. Após décadas de recursos, a maioria dos crimes prescreveu, e ninguém cumpriu pena efetiva pelas mortes.
A analogia é assustadora e direta: a probabilidade de que os responsáveis diretos pelo massacre no Rio de Janeiro, e principalmente seus mandantes políticos, saiam impunes é altíssima. O sistema judicial brasileiro historicamente demonstra uma enorme dificuldade em responsabilizar agentes de segurança e autoridades por execuções sumárias, perpetuando a mensagem de que certas vidas valem menos que outras.
Repensando a Pacificação: A Lição do Complexo do Alemão
Em 2010, a ocupação do Complexo do Alemão foi apresentada como um novo paradigma. Embora
não tenha sido uma operação "sem mortes", a estratégia inicial, com apoio das Forças Armadas, priorizou a ocupação territorial e a instalação de serviços estatais, em vez do confronto direto e da alta letalidade como objetivos primários. A ideia das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) que se seguiu, apesar de todas as suas falhas e do seu eventual colapso, partia de um princípio correto: a presença do Estado não deve se resumir à força policial, mas sim à oferta de cidadania (saúde, educação, cultura, saneamento).
A lição do Alemão não é a de um sucesso absoluto, mas a de que uma abordagem focada em inteligência, ocupação territorial e investimento social tem um potencial muito maior para construir a paz do que a política do "caveirão".

Construindo a Paz: Propostas para o Curto e Longo Prazo
A solução não é simples, mas ela existe e passa, necessariamente, pelo abandono da mentalidade de guerra.
A Curto Prazo (Medidas Emergenciais):
Investigação Independente: Criação de uma força-tarefa externa e independente, com participação do Ministério Público, Defensoria Pública e entidades de direitos humanos, para investigar o ocorrido e garantir a responsabilização de todos os envolvidos.
Revisão dos Protocolos: Suspensão imediata de operações policiais em larga escala em áreas densamente povoadas e revisão completa dos protocolos de uso da força.
Foco em Inteligência: Priorizar a desarticulação financeira e logística das organizações criminosas, em vez do confronto varejista que vitimiza a população.
A Longo Prazo (Soluções Estruturais):
Plano Marshall para as Favelas: Um investimento maciço e contínuo em educação, saúde, saneamento básico, cultura, esporte e geração de emprego e renda nas comunidades, para que a juventude tenha perspectivas para além do crime.
Reforma Policial: Refundação das polícias com foco em treinamento de direitos humanos, mediação de conflitos e polícia comunitária, além de mecanismos rigorosos de controle externo e responsabilização.
Nova Política de Drogas: Debater com seriedade a legalização e regulação de algumas drogas, tratando o tema como saúde pública e não como caso de polícia, para retirar o poder econômico e bélico das facções.
A paz no Rio de Janeiro não será construída com mais armas, mais mortes e mais dor. Ela virá com mais livros, mais oportunidades e, acima de tudo, com o reconhecimento de que cada vida importa. "A liberdade jamais sera dada voluntariamente pelo opressor, ela deve ser conquistada pelo oprimido"
Dr. Ricardo Bianchini de Assunção
Advogado Criminalista
OAB/SP 446443





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