Crítica ao Novo Projeto de Lei sobre Prisão Preventiva: Um Risco aos Direitos e Garantias Fundamentais
- Ricardo Bianchini de Assunção
- 2 de nov.
- 5 min de leitura
A discussão em torno de um novo projeto de lei que visa ampliar as hipóteses de cabimento da prisão preventiva reacende um debate crucial no sistema de justiça criminal brasileiro: o equilíbrio entre a segurança pública e a preservação dos direitos e garantias fundamentais. Embora a intenção de aprimorar os instrumentos de combate à criminalidade seja legítima, a proposta em questão apresenta graves retrocessos, especialmente ao flexibilizar critérios para a decretação da medida cautelar mais gravosa do nosso ordenamento jurídico.

A seguir, apresento uma análise crítica dos pontos mais problemáticos do projeto, com base na consolidada jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores.
1. A Prisão Preventiva como Exceção, e não Regra Processual
Um dos pilares do processo penal democrático é o princípio da presunção de inocência, segundo o qual a prisão antes do trânsito em julgado de uma condenação é medida de natureza excepcional. A prisão preventiva não pode e não deve ser utilizada como uma antecipação da pena. Sua função é estritamente cautelar, ou seja, visa proteger o processo ou a sociedade de riscos concretos e iminentes.
O STF e o STJ, em inúmeras decisões, reforçam que a prisão preventiva é a ultima ratio, a última medida a ser considerada, aplicável somente quando as medidas cautelares diversas da prisão se mostrarem insuficientes.
STF - HC 137728 PR - PARANÁ 0058755-69.2016.1.00.0000: O Supremo Tribunal Federal, neste julgado, reafirma que a prisão cautelar é a ultima ratio, a derradeira medida a que se deve recorrer, e somente pode ser imposta se as outras medidas cautelares dela diversas não se mostrarem adequadas ou suficientes para a contenção do periculum libertatis.
STJ - HC 572565 RS 2020/0085003-0: O Superior Tribunal de Justiça destaca que a prisão preventiva somente pode ser decretada como ultima ratio, para acautelar o meio social e/ou econômico, resguardar a instrução criminal e assegurar a aplicação da lei penal, e não como regra.
Qualquer projeto de lei que facilite a decretação da prisão preventiva, transformando-a em regra, atenta diretamente contra a Constituição Federal e a própria lógica do sistema processual penal.
2. A Gravidade Abstrata do Delito e a Ofensa à Presunção de Inocência
O projeto de lei, ao sugerir que a gravidade do crime, por si só, possa justificar a prisão preventiva, ignora a consolidada jurisprudência dos Tribunais Superiores. Decretar a prisão com base em elementos inerentes ao próprio tipo penal, como a pena cominada, é uma afronta direta ao princípio da presunção de inocência.
A prisão cautelar exige a demonstração de um periculum libertatis, ou seja, um perigo concreto que a liberdade do indivíduo representa. A gravidade abstrata do delito não demonstra, por si só, a periculosidade do agente.
STJ - AgRg no HC 920806 RR 2024/0210040-3: O STJ, citando o STF, entende que é insubsistente a fundamentação de decreto de prisão preventiva que se lastreie meramente na gravidade abstrata do delito, sem indicar dado concreto que evidencie risco à ordem pública ou de reiteração delitiva.
STF - HC 225367 RS: O STF já decidiu que a mera alusão à quantidade da droga, por exemplo, não é suficiente para demonstrar a periculosidade do agente e, consequentemente, não justifica a segregação cautelar.
Portanto, a prisão preventiva não pode ser um juízo de reprovação antecipado da conduta, mas sim uma medida estritamente necessária para garantir a eficácia do processo.
3. A Subjetividade da "Garantia da Ordem Pública"
Um dos pontos mais críticos da legislação atual, e que o novo projeto parece manter, é a utilização do conceito vago e indeterminado de "garantia da ordem pública" como fundamento para a prisão. A subjetividade deste critério abre margem para decisões arbitrárias, baseadas em clamor público ou em presunções sobre a periculosidade do agente.
Os Tribunais Superiores têm sido rigorosos ao exigir que a "garantia da ordem pública" seja fundamentada em elementos concretos que demonstrem um risco real de reiteração delitiva.
STJ - HC 838853 PE 2023/0248250-4: O STJ concedeu a ordem por entender que a decisão que decretou a prisão não demonstrou de forma suficiente o perigo concreto à ordem pública, reforçando a necessidade de fundamentação concreta e individualizada.
STJ - HC 573163 SP 2020/0086761-7: Neste caso, o STJ entendeu que a garantia da ordem pública não foi fundamentada com base em dados concretos, tendo o juiz singular apenas se referido ao requisito, porém, sem fundamentos concretos, atribuindo meras suposições de que a paciente reincidiria.
Manter um critério tão subjetivo como a "garantia da ordem pública" sem a exigência de uma fundamentação robusta e concreta é um convite ao arbítrio e à banalização da prisão preventiva.
4. A Reincidência e o Inadmissível Bis in Idem
O projeto de lei, ao prever a reincidência como um fator quase automático para a decretação da prisão preventiva, flerta perigosamente com o bis in idem, ou seja, a dupla punição pelo mesmo fato. A reincidência é uma circunstância que agrava a pena em caso de condenação, mas não pode, por si só, justificar a prisão cautelar.
A existência de antecedentes criminais não presume, de forma absoluta, a periculosidade do agente ou o risco de reiteração delitiva. É preciso que, além da reincidência, existam elementos contemporâneos que demonstrem a necessidade da prisão.
STJ - AgRg no RHC 192068 MG 2024/0001852-3: Embora este julgado tenha mantido a prisão, ele reforça a tese de que "maus antecedentes, reincidência ou até mesmo outras ações penais ou inquéritos em curso justificam a imposição de segregação cautelar como forma de evitar a reiteração delitiva e, assim, garantir a ordem pública", desde que somados a outros elementos concretos do caso.
STJ - HC 860937 SP 2023/0371761-1: Neste caso, o STJ revogou a prisão preventiva de um paciente reincidente por entender que a fundamentação não se mostrou suficiente para justificar a medida, considerando a quantidade de droga apreendida e a ausência de outros elementos concretos que indicassem risco à ordem pública.
A utilização da reincidência como um cheque em branco para a decretação da prisão preventiva é uma medida desproporcional e que viola a individualização da análise do caso concreto.
Conclusão
O aprimoramento da legislação processual penal é sempre bem-vindo, mas não pode ocorrer ao custo de direitos e garantias fundamentais duramente conquistados. O projeto de lei em questão, ao ampliar as hipóteses de prisão preventiva de forma acrítica, representa um retrocesso e um risco ao Estado de Direito.
É imperativo que o debate sobre a prisão preventiva seja pautado pela técnica jurídica e pela observância dos princípios constitucionais, sob pena de aprofundarmos ainda mais o quadro de encarceramento em massa e de violações de direitos no Brasil.
Dr. Ricardo Bianchini de Assunção
Advogado Criminalista
OAB/SP 446443





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